Enquanto uma leva de pais opta por hábitos alimentares cada vez mais saudáveis e/ou livres de crueldade animal para a dieta de seus filhos, há famílias que veem a reeducação alimentar como a única saída possível para tratar ou amenizar alergias e intolerâncias severas manifestadas pelos pequenos. Muitas vezes, o problema é diagnosticado poucos dias após o parto, o que faz com que a mãe tenha de adaptar o que come logo nas primeiras semanas do puerpério.
Foi isso que aconteceu com a chef de cozinha Mariana Nascimento Ferreira, mãe do menino João Miguel, atualmente com cinco meses de idade. “Descobrimos que o João era APLV (ou seja, que tinha alergia à proteína do leite de vaca) desde o dia que ele saiu do ‘forninho’. No começo os sintomas eram bem discretos, chegavam até a passar despercebidos. Porém, com 15 dias de vida, as coisas foram se complicando: ele sentia cólicas 24 horas por dia, era choro o tempo todo, vomitava tudo o que mamava, tinha diarréia, bolinhas vermelhas pelo corpo e, pior de tudo, começou a apresentar sangue nas fezes”, conta ela.
Apesar de notar que algo andava errado com o pequeno, Mariana chegou a ouvir do pediatra de João Miguel que aquilo tudo era “normal”. Noites sem dormir, choro frequente e muitas orações, segundo ela, acompanharam a fase, que só melhorou após quatro trocas de pediatra, encontrando a solução através do médico que cuidou dela própria durante a infância, há 30 anos.
Já Lilian Santana, influenciadora digital e mãe das meninas Melissa, de 1 ano e 11 meses, e Isabella, de 5 meses, viveu um verdadeiro pesadelo até descobrir sobre a alergia alimentar de sua filha mais nova. “Minha filha estava tão fraca que foi difícil conseguir um acesso sanguíneo, ela mal se mexia. Nos levaram para a UTI, e ela ficou lá por mais cinco dias”, conta Lilian, que hoje vive em alerta constante.
Confira o relato na íntegra de como as mães estão aprendendo a lidar com as restrições alimentares dos filhos e veja, a seguir, o que os médicos aconselham nestes casos.
“Era frustrante ver o meu filho sofrer e não saber o que fazer”
Mariana Nascimento Ferreira, mãe de João Miguel
“Sem exames laboratoriais, apenas considerando os relatos sobre tudo o que contei em relação ao João, o médico o diagnosticou com APLV. É um processo longo e árduo: iniciamos uma dieta restritiva de leite e derivados para mim, e tivemos que iniciar a suplementação com fórmula de aminoácidos para recuperar o peso – até obtermos o diagnóstico, o João perdeu quase 1,5 quilos.
Após estes primeiros passos, iniciamos também o tratamento com uma gastropediatra, o que facilitou muito o processo, e com uma nutricionista que tem me ajudado com os cardápios. Apesar de todas as restrições alimentares, posso dizer que após 4 meses de tratamento temos uma vida normal por aqui.
O João ainda não iniciou a introdução alimentar, então a dificuldade em monitorar a alimentação fica por minha conta – ainda é muito difícil achar produtos sem leite.
Meu filho ainda não tem consciência sobre a alergia, mas espero que ele se cure até atingir um aninho de idade. Eu e meu esposo sabemos que não será fácil, mas como sou chef de cozinha tenho estudado bastante, tentado desenvolver receitas para que ele consiga comer praticamente as mesmas coisas que as outras crianças, mas dentro de padrões que não o prejudiquem. Acredito que, por ele ainda ser um bebê, temos tempo para nos adaptarmos.
Não é fácil ser mãe de uma criança alérgica, tudo é novo, é um caminho desconhecido, mas é bom saber que não estamos sozinhas. Falta informação, faltam opções no mercado, faltam profissionais interessados em ajudar, falta empatia até mesmo de familiares. No nosso caso, o apoio emocional da família foi essencial, e amigos próximos também nos ajudaram muito – isso nos fortaleceu e eu acredito que não conseguiria sem a ajuda deles.
Quando olho para o meu filho crio forças e ganho coragem para estudar sobre o assunto, encarar a dieta restritiva e, assim, não desistir da amamentação. Olho para ele e vejo que tudo valeu a pena”.
“Minha bebê quase morreu por conta da nossa ignorância sobre o assunto”
Lilian Santana, mãe de Melissa e Isabela
“Quando dei à luz, nas duas gestações, fiz questão de cortar derivados do leite e açúcar na minha dieta, para evitar cólicas e gases nas meninas, e com a Melissa deu tudo certo. Já com a Isabella, que foi a minha gravidez mais recente, levei a dieta até o segundo mês, e comecei a comer poucas coisas derivadas do leite, aos poucos. Foi aí que começaram a aparecer os sintomas.
Rastros de sangue apareciam nas fraldinhas de cocô da minha filha, e após isso eu e a pediatra decidimos suspender totalmente os derivados do leite. Passei um mês desta forma, e quando voltei a ingerir os produtos a Isabella começou a apresentar, além do sangue nas fezes, uma textura muito diferente. Depois ela começou com uma onda de refluxo muito intensa, na qual apareceram também vestígios de sangue.
Meu marido não trabalha onde residimos, então precisei fazer tudo sozinha e com o apoio dos meus pais. Levamos a Isabella para a emergência pela primeira vez, onde eles fizeram exames e receitaram um remédio superforte para ela, para quem tem refluxo intenso. Ela já estava começando a ficar desidratada e a equipe médica não percebeu, tanto que tentaram colher o sangue dela por duas vezes, mas sem sucesso. Voltamos para casa no mesmo dia, mas ela vomitou tanto que desidratou em nível alto, e precisamos voltar correndo ao hospital. Foi quando ela ficou internada pela primeira vez.
Desidratada, com níveis sanguíneos muito alterados, colocaram a Isabella no soro e passamos a primeira noite na UTI para que ela ficasse em observação. Entramos no hospital em uma quarta-feira e ficamos lá até o sábado seguinte, quando ela foi liberada.
Aparentemente ela estava bem, mas depois começou a ter uma diarreia muito intensa – eu trocava, pelo menos, três pijamas durante a noite. Na segunda-feira, ela acordou muito ‘mole’ e não reagia, então corri para o hospital. Minha filha estava com um nível de desidratação tão grande que estava a ponto de entrar em choque, e eu não havia percebido.
Isabella estava tão fraca que foi difícil conseguir um acesso sanguíneo, ela mal se mexia. Nos levaram para a UTI, e ela ficou lá por mais cinco dias. Desde a primeira internação eu já havia começado uma dieta intensa, já que ela só mamava no peito. Então, cortaram tudo o que fosse derivado do leite ou soja, e ficamos no hospital por duas semanas até que ela se recuperasse. Saímos de alta e hoje fazemos acompanhamento com um alergologista e uma gastroenterologista pediátrica, e eu continuo com a restrição total para garantir que ela esteja saudável.
Temos duas filhas, então nosso desafio hoje é ensinar um bebê de 1 ano e 11 meses que ela não pode tocar na irmã quando toma um iogurte ou come algo que contenha leite. Todas as vezes que ela ingere esse tipo de alimento, escovamos os dentinhos dela e lavamos as mãozinhas logo em seguida. Fazemos vigilância total, pois é perigoso demais que a Isabella tenha contato: já passamos essa informação para todas as pessoas que estão à nossa volta.
Estamos confiantes de que a Isabella vai se curar em breve, mas a alergia alimentar nas crianças é um assunto de extrema importância e seriedade. Não sabemos em que gravidade uma alergia pode aparecer, e eu vi com meus próprios olhos que elas podem ser fatais. Minha bebê quase morreu por conta da nossa ignorância sobre o assunto, que não deve ser tratado com desatenção”.
Ansiedade parental
Pesquisas apontam que uma em cada cinco mães de crianças alérgicas apresentam transtorno de ansiedade generalizada, e que alergias infantis podem ocasionar um quadro depressivo nos pais, aponta Érika Gomes, doutoranda e mestre em psicologia clínica pela PUC-SP. Além disso, ainda segundo a profissional, um terço das mães de alérgicos está acima do limiar para transtorno do pânico e ansiedade social.
Isso não é à toa: pais e mães de crianças alérgicas têm de lidar com a pressão de monitorar tudo o que o pequeno ingere, dentro ou fora de casa. Quando a criança cresce e tem mais discernimento sobre o mundo, ela precisa, ainda, entender que comer certos alimentos pode ser perigoso e até fatal – é papel dos pais fazer com que isso não gere frustração ou atrapalhe o desenvolvimento do pequeno, o que também aumenta a carga de responsabilidade.
“Os desafios na gestão da alergia alimentar são complexos e podem produzir efeitos emocionais tanto nas crianças quanto em seus pais. Ansiedade persistente, interferindo nas atividades cotidianas, restrição intensa das atividades sociais em função de receio de reação, sintomas depressivos, conflitos familiares envolvendo o manejo da alergia e restrições alimentares desnecessárias são algumas situações em que o suporte psicológico pode ser indicado”.
Jackeline Motta Franco, coordenadora do Departamento Científico de Imunização da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI)
Na opinião de Jackeline Motta Franco, coordenadora do Departamento Científico de Imunização da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI), intervenções psicológicas podem ser realizadas de maneira preventiva para os pais, antes mesmo do surgimento dos sintomas alérgicos. Encontros educativos e atendimentos psicológicos focados no desenvolvimento de estratégias adaptativas de enfrentamento do problema, diz ela, podem funcionar como estímulo para os responsáveis.
Sinais indicativos de alergia alimentar infantil
Jackeline explica que existe um amplo espectro de sinais e sintomas que podem estar relacionados à alergia alimentar. Lactentes e crianças na primeira infância, por conta da maturação funcional de órgãos e sistemas, complementa ela, podem apresentar sintomas gastrointestinais, tais como:
- cólicas;
- regurgitações;
- distensão abdominal;
- flatulência;
- desconforto na hora de evacuar;
- constipação.
“Quando estes sintomas forem muito intensos e persistentes, ou seja, sem respostas às intervenções terapêuticas habituais em crianças com histórico familiar, a alergia alimentar pode ser uma possibilidade – ainda mais se vieram associados a um quadro de dermatite atópica”, reforça.
Ela complementa ao dizer ainda, que algumas crianças podem apresentar sintomas cutâneos leves ao redor da boca ao entrarem em contato pela primeira vez com o alimento alergênico. Outras podem ter um quadro mais grave, com a presença de urticária e vômitos, o que caracteriza uma anafilaxia.
Na escola: como agir
Além disso, quando a criança começar a frequentar o ambiente escolar, toda a equipe educacional deve ser informada sobre a alergia. “É muito importante que a escola esteja aliada à criança e à sua família, estimulando o convívio em grupo e respeitando adequadamente as restrições alimentares. A família deve fornecer à escola um laudo médico especificando o alimento a ser excluído e os cuidados necessários para garantir a saúde da criança, bem como orientações para a nutricionista da escola para confecção e manipulação adequada dos alimentos, evitando contaminação cruzada”, exemplifica a especialista.
Um plano de ação com doses de medicações necessárias, caso ocorra algum problema, também deve ser apresentado para a escola, que precisa, ainda, estar suficientemente treinada para o uso da adrenalina autoinjetora no caso de pacientes anafiláticos, completa Jackeline.
Como conscientizar a criança
Embora nem sempre possível, o diálogo entre pais e filhos é uma das formas mais eficazes de conscientizar o pequeno sobre sua condição alérgica. Érika Gomes ressalta, ainda, que a maneira estabelecida pelos pais para que a conversa sobre alergia aconteça vai interferir diretamente em como o pequeno vivenciará o problema ao longo da vida.
“É importante que os pais obtenham conhecimento adequado, suporte emocional e se sintam autoconfiantes para contribuir para que a criança vivencie a alergia alimentar de forma leve, podendo enfrentar as situações diárias envolvendo a restrição com autoconfiança”, diz ela.
Trabalhar a empatia, buscar não vitimizar a criança em função da alergia alimentar e ser solidário com o pequeno, mas sempre ensinando que as limitações são parte da vida, é outra forma de lidar melhor com a questão.
Por fim, estabelecer refeições em família nas quais todos os membros possam comer os mesmos alimentos também ajuda, bem como encontrar formas de demonstrar afeto e carinho ao pequeno que não estejam relacionadas à alimentação.