Minha mãe sempre me contou que quando era pequena, sua avó lhe dizia para limpar o prato ou “um fantasma viria puxar seu pé a noite“. Era comum na geração dos nossos pais que criança bem educada fosse aquela que comesse de tudo e não deixasse um grão sequer no prato, e eles, obviamente, trouxeram essa mentalidade consigo depois de adultos e também a reproduziram conosco.
O problema, que hoje tem sido mais discutido, é que essas medidas de convencimento ou imposição para a criança comer algo que não quer são negativas. “Atitudes excessivamente controladoras e impositivas podem induzir ao hábito de consumo excessivo de calorias. Esta condição é apontada como uma das causas do aumento das taxas de obesidade infantil nos últimos anos, além de também estar relacionada às dificuldades alimentares na infância”, explica a nutricionista Paula Crook, especialista em alimentação infantil e membro da PB Consultoria em Nutrição, em São Paulo.
Mas afinal, qual é o problema?
Quando a criança está pronta para a introdução alimentar, ela é capaz não só de deglutir os alimentos, como também de saber se já comeu o suficiente ou se precisa de mais, e isso precisa ser respeitado. Senão, a pressão externa a fará perder essa percepção, o que fará falta mais adiante.
“Quando a criança passa por isso, ela começa a perder o contato da relação dela com a comida”, sintetiza a educadora Fabiolla Duarte, especialista em comportamento alimentar infantil e adulto e criadora do projeto Colher de Pau. Ela explica como isso é uma violência, mas que foi normalizada em nossa sociedade. “Em algum nível, é uma situação de abuso, afinal a gente não força um adulto a comer, mas forçamos crianças”, compara.
Nisso, o pequeno é obrigado a colocar dentro de si um alimento que ele não queria ingerir, o que aumenta seu estresse e também o ensina a aceitar coisas mesmo que não concorde, para ter algum ganho.
O problema não é só obrigar
Para conseguir o objetivo de ter um prato limpo, os pais lançam mão de pressão (“nada de sair da mesa enquanto não terminar”), chantagens (“se não comer tudo não vai ter sobremesa”), barganhas (“se comer todo o brócolis, vai ganhar um brinquedo novo!”) e distrações (“só mais um pouquinho, olha o aviãozinho!”).
A comida deixa de ser alimento e nutriente e se torna uma moeda de troca: “então ela aceita ser violada por algo que não quer dentro do seu ser, pois em troca vai ganhar um brinquedo ou levantar da mesa ou poderá receber atenção respeitosa dos pais e ser tratada como alguém que faz algo certo”, enumera Duarte.
Crook ressalta como um alimento recusado hoje pode ser aceito naturalmente até mesmo dias depois, sem a necessidade de artifícios e sem que seja associado a momentos ruins. “Além disso, dar uma recompensa em troca da comida pode fazer a criança associar que se ela comer, poderá ter o que quiser”, completa a nutricionista.
Mas como eu vou saber que o meu filho está comendo o suficiente?
Não existe uma quantidade padrão de comida ou uma fórmula mágica para entender se a ingestão é o suficiente. E na realidade isso é bastante positivo! “Ao não saber, a gente tem a oportunidade de dar um passo para trás e observar, e então investigar a resposta que emerge”, comemora Duarte.
A educadora comenta como a alimentação vai variar conforme o período pelo qual a criança está passando.”Em picos de crescimento ela comerá mais, quando ela está doentinha ou em estresse, será menos”, descreve. Assim como nós adultos, que podemos ganhar ou perder apetite conforme o que acontece em nosso dia.
Mas é claro que existem sinais claros de que a alimentação está insuficiente. “Cansaço e falta de disposição são os principais. O ideal é acompanhar o crescimento, desenvolvimento e resistência imunológica da criança e eventualmente fazer exame de sangue para checar alguma baixa de nutrientes”, reforça Crook.
O ideal também é sempre conversar com a criança, que pode não ter uma resposta imediata para a recusa, mas que se for questionada com gentileza, certamente pensará sobre isso em seu tempo. “Pergunte: ‘você está satisfeito, meu filho?’ e deixe claro, ‘se você quiser comer mais depois, me fala’. A criança então vai desenvolvendo a habilidade em se comunicar com clareza, porque ela está sendo perguntada dessa forma”, descreve Duarte. Ou seja, o ganho é em diversas esferas da vida do pequeno.
Quer garantias? Sente-se a mesa
Duarte compara muito a introdução de alimentos com aprender a andar: a criança costuma copiar o que ela vê. “Se todos começassem a rastejar em vez de caminhar, os pequenos nunca tentariam ficar de pé”, metaforiza a educadora. Portanto, a melhor forma de garantir que seu filho coma bem e tenha uma boa relação com os alimentos, é você dar o exemplo.
“O mais importante é lembrar que aprendemos a comer através da observação, estímulo motor, degustação do que foi oferecido, associação (como aquele alimento o fez sentir) e familiarização”, descreve a nutricionista Crook.
Mas e se a minha relação com a comida não for das melhores? Não tem problema. “Mesmo que você tenha um distúrbio alimentar não resolvido, só de começar a olhar para essa questão, já é transmitido para a criança que essa relação está sendo observada e cuidada”, reforça Duarte.
Vamos repensar a educação alimentar?
Por fim, Duarte levanta um ponto importante. Hoje a educação das crianças está muito relacionado a números, gráficos e previsões: andar com tantos meses, comer com outros tantos. “A gente tem mania de colocar rótulos nas crianças a qualquer curva da linha reta do que se espera em termos de comportamento infantil”, observa.
É como a questão da alimentação, associamos que a fórmula é: criança que come bastante é a criança saudável, e para isso ela precisa ter ao menos cinco cores de alimentos na refeição, comer de tudo e não deixar nada no prato. “A gente celebra se ela consome jiló, rúcula, agrião, não importa o preço que ela pagou por isso, e sim que conseguimos. Ou seja, há um elemento narcisista”, provoca a educadora.
Ao mesmo tempo, se a criança deixa de comer algo, o rótulo é colocado nela, e não nos pais, os reais responsáveis pela situação. “Quando uma criança desenvolve uma fobia à comida, a responsabilidade é do adulto, somos nós que estamos cuidando mal dessa questão, por diversos motivos. Mas deveria recair sobre nós este crachá, este rótulo”, pondera.
Por isso, a especialista aponta que mesmo a introdução alimentar deve ser feita olhando os sinais de que a criança está pronta para isso não só biologicamente (após os 6 meses), como mentalmente. Um sinal é quando ela começa a se interessar pelos alimentos que os pais comem: fica curiosa, quer levá-lo à boca. “A educação alimentar é estar alinhado com a fome e a saciedade. Tem mais a ver com comportamento e subjetividade do que com quantas cores há no prato“, finaliza a especialista.