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Cartas para minha filha

Jornalista e editora do Bebê.com.br, Fernanda Tsuji guarda cartas para o futuro, colecionando textos para sua filha Cecília ler quando for mais velha.
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Desta vez, não vou dar conta. E tá tudo bem.

Em tempos de coronavírus, alguns pratos vão cair. O que a gente está fazendo mesmo, filha?

Por Fernanda Tsuji
Atualizado em 9 abr 2021, 16h23 - Publicado em 26 mar 2020, 16h26
ilustração com silhueta de mulher deitada na cama
 (Ezrena/Getty Images)
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“A gente tá de férias, mãe?”

Não, filha. A gente está de férias quando pode caminhar no parque, tomar picolé no meio da tarde na padaria, nadar na piscina do prédio no fim do dia. Trancados num apartamento financiado, trabalhando para um país que não acredita na imprensa – profissão do papai e da mamãe – a gente não tá de férias. Infelizmente.

Fecho os olhos e lembro da gente caminhando no meio de um campo de lavanda. Idílico, poético, e agora, impossível. Parece que eu vi num filme cafona, e não que faz apenas seis meses que a gente viajou de carro pela estrada de Cunha-Paraty pra ficar frustrados num cartão-postal que era mais bonito no Instagram (oh, que surpresa).

Mas agora, respirando fundo pra atravessar a rua e entrar no supermercado de prateleiras vazias, eu sinto falta até do sorvete com preço absurdo que não tomei na tal viagem onírica. Saudade de poder ir. Longe.

Ontem você me disse: “quando o bichinho não deixar mais ninguém doente, a gente pode ir à praia?”. E aí a ficha caiu. Já virou normal pra você estar em casa e não poder ir pra escola. Virou rotina o trajeto do quarto pra sala, da sala pra cozinha. Dos brinquedos fazerem as vezes dos seus amigos. E me deu um aperto no coração.

Tudo mudou muito rápido. Dizem isso de tempos de peste e de guerra. Em uma semana uma cidade estava ali, na seguinte já não existe mais.

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A gente tenta se agarrar a um fio de normalidade, de rotina, para não perceber que tudo está fugindo rápido do controle, que a economia está ruindo, que vamos precarizar o que já estava remendado, que a gente está virando aquelas pessoas que líamos nos livros de história tentando sobreviver em tempos horríveis. São tempos horríveis. Fato.

E é difícil entender o tamanho do que está acontecendo estando inseridos no caos. Batemos palma para os médicos na varanda de casa numa reza secreta para que a gente nunca vá precisar deles. Batemos panelas para amenizar a ansiedade de não termos norte, numa tentativa louca de fazer com que todos percebam no que estamos metidos. Em casa, com o congelador lotado e o medo no travesseiro.

E o cansaço é grande, me desculpa, filha. O intuito desta carta era pra acalentar outras mães que possam estar me lendo agora, mas eu também preciso de um respiro, de um desabafo, de uma noite de sono em que não tenha pesadelos imaginando que o número da pandemia vai ter dobrado quando eu acordar na manhã seguinte.

Eu estava otimista, juro. Mas sou jornalista e jornalista se apega a fatos, a dados, a entrevistar quem tem algo a dizer e nenhuma das opções trazem boas novas. Desculpa se ontem eu não tive tempo de brincar de cabaninha, mas não dá pra me esconder agora. A gente pode ler um livro hoje, porque informação, veja só, nunca é demais.

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Faz só um mês, nem isso, e eu já estou cansada como se o ano estivesse acabando. Porque parece que tudo isto está longe de ter fim, a gente vai colher as consequências e eu espero que quando você tiver idade suficiente para ler este texto, elas já tenham acabado.

Ficar em casa é uma armadilha, filha. Mexe com nossas certezas. Nos primeiros dias, você percebe o quanto era importante sair para trabalhar ou estudar, como era fundamental te mandar pra escola pra me organizar, como um home office era um pequeno privilégio para alguns poucos privilegiados. Quando uma nova agenda entra em vigor (forçosamente) dentro de casa, a gente bate cabeça pra que tudo permaneça minimamente sob nosso controle, como conhecíamos, mas as surpresas e cansaços vão escorrendo pelas bordas.

Se na primeira semana a gente tenta manter a produtividade e a casa em ordem, na segunda a gente começa a se questionar sobre o porquê de fazer o que fazemos, no ritmo que fazemos, com quem fazemos. Somado à isso, existe a possibilidade de sentir seu cheirinho e o seu abraço a qualquer hora do dia, ver você acordando com calma (sem a correria do “põe o uniforme-escova dente-pega a mochila”) e isso mexe com as estruturas de uma mãe. Por que era mesmo que a gente passava tanto tempo separadas?

Não tá fácil. Enquanto edito uma matéria, faço uma reunião de planejamento anual – terá ano pra ter orçamento? – você me pede gelatina, me pede pra ligar na “Patrulha Canina”, me chama “mãe, mãe, mãe”, até eu perder a paciência. Longe de mim mentir que não tenho vontade de me trancar no quarto e ver uma série que me faça chorar até desentupir a minha cara. Mas ei, como eu quero que você entenda e fique calma se eu mesma não entendo e, deus sabe, não estou calma?

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Estou é exausta e me junto a todas as outras mães em todas as outras casas. Cansadas recolhendo brinquedos na sala – ou desistindo de recolher -, chorando enquanto cozinha o arroz, segurando o filho no colo enquanto faz um video call com os colegas de trabalho e suas samambaias. Invejando quem pode se dar ao luxo de estar só fazendo maratona na Netflix ou ioga no Instagram.

Duas noites atrás, por volta da meia-noite, eu sentei pra ver uma série depois que todo mundo já tinha ido dormir. Não foi espontâneo. Eu calculei. Lembra disso, filha, guarde sempre um pedaço seu pra você. Isso ajuda a enxergar através do cansaço.

O mais difícil por aqui é ter que mensurar o tempo de cada coisa. É ter que trabalhar no intervalo em que a tinta seca do desenho, é ter que brincar enquanto não chega um novo texto para editar. É um looping de exaustão que eu me meto ao tentar dar conta de tudo. O erro de sempre.

O mais frustrante é que a resposta também é a mesma, mas que eu só consigo me lembrar quando a poeira baixa na madrugada: não vai dar para fazer tudo. A prioridade é te manter alimentada, limpa, saudável, segura. Mas eu não posso me esquecer de mim na pilha de roupa suja.

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Então este é o nosso combinado. Vamos deixar cair alguns pratos, você vai ficar entediada e ver mais celular do que eu gostaria, e eu vou me permitir parar e cheirar o seu pescoço no meio de uma tarde cheia de trabalho. Poder escutar a sua voz em horários que antes não nos víamos. Tem muito valor nisso, sabia? A vida não é mais a mesma de um mês atrás, não dá pra repetir os mesmos padrões. Que difícil. Que bom.

Talvez seja hora de aproveitar que ninguém tem mesmo certeza de como vai ser e viver o que der agora. Na medida do que der.

“Você pode tentar não morrer, mamãe?”, você me disse ontem. E eu chorei até meus olhos doerem. A gente tá tentando, meu amor, a gente tá tentando.

P.s: Filha, aí do futuro, me liga quando ler isto. Eu vou estar esperando. 

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