Aprender a Sentir, Aprender a Ser

Cecília Rocha, ou Ciça Rocha (@ceciliacicarocha), é psicóloga e arteterapeuta, autora do livro A Casa de Pedro, mãe do Heitor e do Henrique e madrasta do Enzo.
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O olhar da primeira infância

Precisamos estar atentos e sintonizados ao mundo infantil para ajudarmos nossas crianças a lidar com os sentimentos

Por Cecília Rocha
Atualizado em 26 nov 2023, 10h52 - Publicado em 26 nov 2023, 10h00

Eu tinha 6 anos quando a coordenadora da escola me chamou. Tinha acontecido algo com meu irmão de 3 anos que estudava na mesma escola que eu. Ao meu redor, via professoras andando de forma apressada e sentia uma tensão no ar que me deixava angustiada e aflita. “Algo sério aconteceu com meu irmão ”, concluí imediatamente.

Me levaram às pressas para o banheiro da escola e, lá, um tumulto de crianças tentando entrar ou ajudar, não sabia ao certo o que tentavam fazer, mas percebi pelos olhares de todos que eu estava sendo ansiosamente aguardada. Eu podia escutar “é a irmã dele” e, assim, sentia a importância do meu papel ali. Meu irmão chorava copiosamente e a professora logo falou: “Pronto. Sua irmã chegou”. Colocaram ele no meu colo e eu senti uma mistura de responsabilidade, angústia, pena e medo.

Aos poucos, fui sabendo o que tinha acontecido: algum colega da sala dele tinha jogado areia em seus olhos e, desde então, ele não conseguia os abrir. E assim, bem no meio de todos esses sentimentos, a raiva também chegou, e eu queria saber quem tinha feito aquilo com ele. Mas, junto com a raiva, a vergonha também fazia morada e me impedia de dizer uma única palavra sequer.

Ouvi algumas crianças falarem que ele não iria mais conseguir abrir os olhos e o pavor se aproximou de mansinho, misturando-se a todas as outras emoções naquele banheiro.

Fiquei com aquele menino pequenininho no meu colo chorando por intermináveis minutos, não sei ao certo quantos, pois hoje vejo que tudo parecia muito maior do que era (inclusive o tamanho das cadeiras, do banheiro e da escola).

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Montagem de menina de mãos dadas com adulto
(Imagem e colagem: Canva/Bebê.com.br)

Quando me lembro dessa história, fica muito claro o quanto para as crianças tudo pode parecer maior, mais intenso, tenebroso e dolorido. E o quanto, se não tivermos atentos e sintonizados a esse mundo infantil, que tem linguagem própria, essa diferença de olhares pode criar abismos enormes e, por vezes, intransponíveis.

Lembro da minha mãe chegando à escola e nós dois entrando juntos no carro. A dor era enorme, meu irmão não conseguiria mais abrir os olhos, mas se aproximava também dali o alívio: “agora minha mãe tomará conta da situação”. Mal viramos o primeiro quarteirão, meu irmão abriu um dos olhos e eu perguntei desesperadamente: “você conseguiu abrir o olho?” Ele respondeu calmamente que sim. Dessa vez, era o momento de a surpresa chegar, pois para aquela menina no auge da primeira infância, essa não era uma alternativa sequer imaginada.

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Fico pensando em tudo o que aquela menina sentiu naquele dia, sem saber dar nome a nada e perdida no meio de tantas emoções, sentimentos e pensamentos. Fico pensando também em tudo o que acreditamos ser e não é. E mais importante do que isso, em tudo o que, mesmo sem ser, acaba sendo, pois não vemos o olho abrir no quarteirão da esquina.

Gosto de questionar quanto dessas crenças e certezas carregamos hoje em nós e o quanto muitas confusões poderiam ser evitadas se simplesmente olhássemos com os olhos da criança. Gosto de lembrar que algumas mudanças estão em nossas mãos e que podemos ajudar nossas crianças a se sentirem em segurança, enxergando o tamanho certo das coisas.

É só abrirmos nossos olhos e olharmos em direção aos olhos delas.

Vamos tentar?

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