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A difícil missão de conviver com uma mãe narcisista

Entenda o que é o narcisismo materno, como ele pode ser prejudicial para toda a família e, principalmente, como lidar com a questão.

Por Vanessa Gomes
Atualizado em 3 jul 2024, 19h15 - Publicado em 17 jun 2022, 15h05

“Você só está vivo(a) graças a mim”. “Você me deve”. “Você não valoriza nada do que eu faço para você”. “Você não faz nada direito”. “Quando eu tinha a sua idade, já tinha feito mais e melhor”. Mães que usam frases como essas de forma recorrente apresentam uma chance de serem narcisistas ou de terem traços de narcisismo, sabia? E mais: há ainda uma probabilidade de que os indivíduos que ouvem declarações do tipo repitam o padrão com seus próprios filhos. “Uma pessoa narcisista tem traços de egocentrismo, de uma visão hiperinflada a respeito dela própria. Ela se supervaloriza sempre, em qualquer situação”, explica o psicanalista Artur Costa, professor da Associação Brasileira de Psicanálise Clínica (ABPC).

O nome vem da mitologia grega. Narciso era um belo jovem que, ao ver seu reflexo sobre um lago, apaixonou-se tão perdidamente por si mesmo, que caiu nas águas profundas e morreu afogado. “Existem pessoas que têm traços narcisistas em alguns momentos e ambientes, e pessoas que desenvolvem o transtorno psiquiátrico mesmo”, diferencia o especialista.

“Uma mãe narcisista pode causar traumas extremamente profundos nos filhos, mesmo enquanto eles ainda são muito pequenos”

Artur Costa, psicanalista e professor da Associação Brasileira de Psicanálise Clínica

Quando esse traço ou esse transtorno se aplica a uma mãe, as consequências podem ser graves e, como já mencionamos, até levadas de geração a geração, perpetuando o problema. “Grande parte dos traumas acontece na infância e uma mãe narcisista pode causar traumas extremamente profundos nos filhos, mesmo enquanto eles ainda são muito pequenos. O dano é realmente muito potente e vai se refletir na vida adulta, inevitavelmente”, aponta Costa.

De acordo com estimativas levantadas nos Estados Unidos e publicadas no periódico científico The Journal of Clinical Psychiatry, a prevalência do transtorno em homens é muito maior – cerca de 75% dos casos diagnosticados são em pacientes do sexo masculino. Mas por que, então, se fala mais de mães narcisistas do que de pais narcisistas? Segundo o psicanalista, os danos são maiores e mais sensíveis nas mulheres justamente por causa da maternidade.

Ser filho ou filha de uma mãe narcisista: como é?

“A mãe narcisista admira somente a si mesma. Ela pode até admirar outras pessoas, desde que essas outras pessoas se pareçam com ela”, explica o psiquiatra e psicoterapeuta Wimer Bottura, membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Por isso, uma das características da mãe narcisista é querer ou até exigir que os filhos sejam e ajam exatamente como ela. Se não fizerem dessa forma, deixam, automaticamente, de merecer seu amor e sua atenção. “Ela é centralizadora, manipula, abaixa a autoestima dos outros. Às vezes, usa doenças para controlar quem está à sua volta”, exemplifica Bottura.

Há também as mães que se gabam excessivamente dos filhos e projetam neles tanto suas expectativas como suas frustrações. Elas vivem a vida dos filhos, não voltam para a vida delas, conforme as crianças se desenvolvem”, acrescenta a psicóloga Lígia Dantas, membro da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana (SBRH) e criadora do Entra na Roda, um grupo de apoio psicológico online de acolhimento a mães e mulheres.

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São mães que olham apenas para si – e querem que todos façam o mesmo, principalmente, o parceiro, a parceira e os filhos. Quando as crianças começam a se desenvolver e a criar interesses diferentes, elas simplesmente não conseguem aceitar. “Já atendi casos em que a sogra, ao passar o fim de semana na casa dos filhos adultos, queria dormir no meio, na cama do casal”, conta Lígia.

Existe também a questão da competição com os filhos, sobretudo na adolescência. Elas querem mostrar que são melhores e que sabem mais. Os sentimentos dos jovens, neste caso, são sempre invalidados.

Por trás desse comportamento…

Por mais paradoxal que pareça, a mãe narcisista tem dificuldade com sua autoestima, por isso, é tão dependente da admiração externa. Muitas vezes, a projeção sobre os filhos (desejar que eles sejam perfeitos, arrumá-los impecavelmente e deixá-los o mais parecido possível com ela) é uma tentativa de fazer com que eles recebam elogios e, assim, saciem seu ego.

A mãe narcisista tem dificuldade com sua autoestima, por isso, é tão dependente da admiração externa

“O tempo todo e a qualquer custo, ela vai querer ser reconhecida para suprir esse amor-próprio que não consegue produzir sozinha. Então, sempre vai exigir do parceiro, da parceira, dos filhos, o reconhecimento daquilo que faz e, às vezes, de forma mecânica”, aponta o psicanalista Artur. “O narcisista sempre acha que ele trabalha mais, que o sofrimento dele é legítimo e o do outro não. Muitas vezes, é hipersensível, por tudo se magoa, se fere. Quando começa a sangrar, não para nunca, não suporta uma crítica de qualquer tipo que seja”, acrescenta.

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De acordo com o especialista, trata-se de alguém que não consegue se doar, apenas receber doações. “Ela tem dificuldade de ofertar seu tempo para os filhos, porque vai querer que eles, na verdade, deem a ela o máximo de tempo e de atenção. Pode ser abusiva, justamente por se considerar superior. Cria suas próprias regras, exige excessivamente respeito e nunca pede desculpa. Admitir culpa é se diminuir e diminuir a visão que ela tem a respeito de si mesma”, pontua.

Como ensinar crianças a reconhecer e lidar com as emoções ?
(Choreograph/Thinkstock/Getty Images)

Grandes prejuízos e muita terapia

E quais são os reflexos de tudo isso para essas crianças? “O transtorno narcisista na maternidade tem danos gigantescos, até mesmo para a sociedade, porque gera um dano nos filhos e, consequentemente, nos netos. Filhos atingidos por uma mãe narcisista não tratada vão transferir algumas dessas coisas para os seus futuros filhos também”, diz o psicanalista. Está aí, inclusive, uma das explicações mais comuns para uma pessoa narcisista: pode ser que, de alguma forma, ela esteja repassando o que viveu ou, então, usando tais atitudes como um mecanismo de autoproteção.

Tudo isso, enquanto o filho cresce invalidado, tendo suas opiniões e seus desejos atropelados pela “soberania” da mãe. “A criança vai se sentir sempre insegura em tomar suas próprias decisões, vai ficar totalmente dependente dessa mãe”, aponta a psicóloga Lígia. Tal contexto, de acordo com a psicóloga, prejudica as relações sociais e profissionais. “Uma mãe narcisista pode deixar o filho infantilizado também”, complementa.

Quando as crianças crescem e começam a criar novos vínculos, vem um outro momento desafiador. “Às vezes, a mãe ocupa todos os espaços, todas as necessidades. ‘Para que você vai casar? Se relacionar? Tem tudo aqui em casa. Te dou amor, comida’. Ela se acha onipotente”, exemplifica Lígia.

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“A mãe narcisista eventualmente quer escolher com quem os filhos vão se relacionar. Eles se veem envolvidos em uma manipulação tão forte, que não conseguem escapar. Há muito dano à liberdade e ao direito de as pessoas fazerem o que têm vontade de fazer”, diz o psiquiatra Wimer Bottura.

Os traços de narcisismo na maternidade trazem prejuízos também para a própria mãe, que, em vez de celebrar, vai sofrer mais a cada passo do filho

Os traços de narcisismo na maternidade trazem prejuízos também para a própria mãe, que, em vez de celebrar, vai sofrer mais a cada passo do filho; que vai ter ainda mais dificuldades nessa missão exaustiva e que exige tanto das mulheres; que fará escolhas muitas vezes desconfortáveis e desvantajosas a ela mesma, apenas para receber elogios e atenção; que precisará lidar com o afastamento das crianças, conforme elas percebem a situação e ganham independência.

Todo mundo é narcisista – e isso pode ser bom!

É importante ressaltar que traços de narcisismo são comuns a todos nós. E, em certo momento, especificamente na maternidade, são até essenciais! “Existe uma fase, falando de mães, em que é necessário ser narcisista. É com essa característica que ela vai ler o desejo do bebê a partir da sua experiência”, aponta a psicóloga Lígia.

Segundo a especialista, como o bebê não fala, a mãe pensa, supõe e age para atendê-lo a partir de seus próprios desejos e perspectivas. “É a chamada fase do espelho, em que ela olha para o outro e se vê”, explica a psicóloga. “É um período fundamental para a constituição psíquica do bebê. Sua mãe vai nomeando e ajudando ele a entender o mundo”, explica.

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A psicóloga afirma que esse é um processo necessário e, caso não aconteça, há inúmeros prejuízos – por exemplo, a não criação de vínculo entre os dois. “Só que, em determinado momento, isso tem que começar a se deslocar, para que o filho possa se desenvolver. O que acontece com a mãe narcisista é que, muitas vezes, ela acaba vivenciando, olhando aquele filho como uma continuidade dela. Não permite que ele cresça e não volta para a vida dela”, diz.

Como lidar com uma mãe narcisista e o que fazer se você se identificar como uma?

O primeiro desafio é perceber que você é/tem uma mãe narcisista e que certos comportamentos não são normais. Em seguida, é necessário procurar ajuda – tanto sendo filho quanto sendo a mãe. “É preciso buscar uma terapia”, recomenda o psiquiatra Wimer Bottura.

Dizer à mãe que ela é narcisista e que precisa de ajuda é um desafio, já que a mensagem será entendida como uma crítica. Há ainda uma outra questão. Quando ela consegue perceber a existência do problema e se dispõe a fazer um tratamento, vem outra etapa nada simples: provavelmente, a mãe narcisista achará defeitos em todos os profissionais com quem conversar. “Ela vai admirar o terapeuta enquanto ele a admira. Quando ele começar a confrontá-la, ela vai querer fugir e tentar encontrar outro. É preciso ter muita habilidade”, afirma o psiquiatra.

Não se trata de um processo fácil, mas o resultado tende a ser bastante compensador para todos. Se, de alguma forma, você se identificou com o que acabou de ler, pare, reflita e lembre-se: pedir (ou aceitar) ajuda pode fazer toda a diferença.

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