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“Penso se a próxima cabeça que a bala vai encontrar será a da minha filha”

Em meio a uma sequência de mortes violentas de crianças e adultos negros, uma mãe faz um relato emocionante sobre o impacto do racismo na sua vida.

Por Chloé Pinheiro
Atualizado em 5 jun 2020, 16h24 - Publicado em 5 jun 2020, 16h04
 (Reprodução/Arquivo Pessoal)
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Há poucas semanas, o adolescente João Pedro, de 14 anos, foi vítima de uma operação policial enquanto brincava dentro da sua casa. Nesta semana, o menino Miguel, de apenas cinco anos, morreu sob os cuidados da patroa enquanto sua mãe, uma mulher negra, descia para passear com os cachorros da casa, na qual trabalhava como empregada doméstica.

 Para as mães de filhos negros, notícias como essas têm um peso particular: o medo de que a próxima vítima do racismo seja o próprio filho. Conversamos com Allana Matos, de 30 anos, mãe de Lua, 3. Nascida e criada no Rio de Janeiro, cidade marcada pelas mortes de crianças, geralmente negras, Allana atualmente vive em São Bernardo do Campo (SP), mas não está livre da sensação de insegurança.

 Em conversa com o Bebê.com.br, Allana faz um relato transparente e emocionante sobre suas vivências como mulher e mãe negra. A leitura de suas palavras é tão dolorida quanto urgente.

“Meu histórico pessoal com o racismo”

Minhas principais memórias sobre o assunto vêm da infância, onde estamos mais suscetíveis a episódios de racismo. Aos cinco anos, passei pelo meu primeiro corte químico (aplicação de produto alisante que queima o couro cabeludo e frequentemente leva à queda dos fios) e acabei perdendo meu cabelo.

Mais para frente, aos nove, fui para a escola uma vez com o cabelo cacheado e a professora fez uma coisa que não era usual: colocou a gente em fila para olhar os cabelos de todos, então parou na minha frente e disse: “Que nojo, tem uma ninhada de piolho na sua cabeça!”

Allana Matos
Allana depois de seu primeiro corte químico (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Minha mãe sempre foi muito neurótica com questões de limpeza e cuidadosa com meu cabelo porque sempre fui lida como uma criança negra (meu irmão tem a pele mais clara). Nossos pais tinham a preocupação de andarmos sempre arrumados, com roupas limpas, não podíamos nem ir comprar pão desarrumados. Meu pai dizia que não queria que fôssemos lidos como bandidos ou como ‘sujos’, um estereótipo atribuído ao povo negro.

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 Neste dia, depois de sofrer bullying durante toda a aula, cheguei em casa e pedi para minha mãe olhar a minha cabeça. Ela não encontrou piolhos, mas deixou claro que o que havia ali era racismo. Ela sempre pontuou muito essa questão, para que eu entendesse que o que eu passava não era culpa minha, mas do olhar do outro sobre mim.

 Outro episódio, que relatei nas minhas redes sociais, ocorreu aos seis anos, quando a professora estava selecionando crianças para um passeio ao Pão de Açúcar. Quando perguntei se seria escolhida, ela respondeu: ‘Neguinha de morro não vai pra passeio’ e começou a rir. Pensa na tela azul que deu na minha cabeça. Nada naquela justificativa fazia sentido.

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Esses dias eu tava na terapia lembrando da minha primeira memória com o racismo. Ia ter um passeio na minha escola, uma excursão para o Pão de Açúcar, mas não tinha lugar para todas as crianças, então as professoras estabeleciam critérios para decidir quem ia ou não. Bom, o dia do passeio estava chegando e a minha professora não tinha indicado quem da nossa sala ia, então eu no alto da minha inocência de seis anos, fui perguntar se eu tinha sido escolhida pra ir. No que a professora responde: "Neguinha de morro não vai pra passeio (muitos risos)". Pensa na tela azul que deu na minha cabeça. Nada naquela justificativa fazia sentido. Eu cheguei em casa e contei isso pra minha mãe, que ficou pistolassa, e me explicou o que é racismo. E que eu nunca deveria deixar ninguém me diminuir por causa da minha cor. No final daquele ano o meu pai pegou todo o décimo terceiro e levou a gente pra conhecer o Pão de Açúcar. Essa memória trouxe muitas outras. Tipo o dia que a professora do meu irmão chamou a minha mãe na escola pra dizer que ele tinha um amigo gay e que era bom a minha mãe separar a amizade pro meu irmão "não ficar gayzinho também". Naquela tarde minha mãe chamou ele pra brincar com a gente lá em casa, e disse que se ele quisesse ir todas as tardes seria bem vindo. Lembrei dela chamando a gente depois e dizendo que mais do que nunca o Gui ia precisar do nosso apoio. Queria contar tudo que a minha mãe me ensinou sobre cuidar do outro e sobre lutar contra o preconceito, mas eu acho que não tenho mais caracteres. Putz Dona Lúcia, como a senhora faz falta nesse mundo louco.

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Por conta disso tudo e dos padrões de beleza que nos eram colocados, até os 25 anos não me achava bonita. Quando comecei a conhecer o movimento negro, que colocava muito esta questão do cabelo natural, comecei a me encontrar nesse sentido. Mas foi duro, mesmo crescendo em um lugar pobre, de maioria negra, existia a hierarquia social muito delimitada onde o privilégio e o acesso eram garantidos aos brancos.”

O peso da violência

“Esses dias, estava comentando com outras mães em um dos trabalhos que desenvolvo em uma comunidade sobre a angústia que sinto toda vez que se noticia a morte de uma criança negra. A sensação é que a próxima cabeça que a bala vai encontrar será a da minha filha, sabe?

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E a gente é ensinado pelo sistema, pela mídia, que se seguir o “caminho certo” não vai morrer, que quem morre é bandido. Mas a cada morte dessas fica claro que essa lógica é insustentável. A família da Ágatha (morta pela polícia aos oito anos) se esforçava para dar uma educação de classe média para ela, ela fazia curso de balé, enfim… Mesmo com todas essas tentativas de tirar ela dessa linha tiro, não foi o suficiente para salvar sua vida.

Depois, nessas últimas semanas, a morte do João Pedro, que estava em casa, era um menino evangélico, nunca teve nenhuma associação com nada. Qual é o lugar seguro num contexto como esse?

Quando essas notícias saem eu fico desestabilizada, não consigo dormir, tenho crises de ansiedade, porque sou dominada pela sensação de impotência, de que não consigo proteger minha filha. Minha filha nasceu em São Bernardo, mas essa angústia e preocupação nos rondam porque, enquanto houver uma polícia racista, nossos filhos não estarão seguros.”

“Não importa onde eu esteja, se é um bairro de classe média, se dou a melhor educação para minha filha, ela sempre será vista como um alvo pela cor da sua pele. É bem pesado.”

Medo da hiperssexualização

“Um dos grandes medos que tenho em relação à minha filha é a hiperssexualização do corpo da mulher negra. Da imagem que foi construída desde o período escravocrata e que não foi superada, de que esse é um corpo para o sexo.

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Parece que existe um imaginário de que somos desprovidas de humanidade, fora a ideia de que mulher branca é para casar e mulher negra é para satisfazer os desejos carnais do homem, o que influencia também no abandono das mulheres negras, que vivenciamos na prática.”

Violência sexual e raça

No Rio de Janeiro, mulheres negras são 56,8% das vítimas de estupro e 62,2% das de homicídios, segundo dados do Dossiê Mulher 2015, realizado pelo Instituto de Segurança Pública do estado (ISP-RJ).

É possível proteger uma criança do racismo?

“A Lua tem três anos, então não converso sobre racismo com ela ainda. Tomei uma postura de esperar as reações dela, pois vim de uma criação muito doutrinadora, em família evangélica, e sinto que isso foi prejudicial para mim. Então prefiro ficar atenta aos sinais que ela dá e lidar com a situação a partir daí.

Uma vez, estávamos na porta da escola esperando a abertura e algumas crianças estavam chegando e começando a brincar juntas. A Lua tentou algumas vezes interagir com eles. Na primeira vez, viraram as costas e foram brincar em outro canto. Achei estranho, mas pensei que poderia ter sido coincidência. Ela foi de novo até eles, tentou puxar conversa, mas mais uma vez eles a ignoraram e saíram de perto. Isso aconteceu mais umas duas vezes, aí ela desistiu, ficou triste e veio para o meu lado.

Aquilo acabou comigo. Das minhas experiências desde a infância, sei que quando acontece algo assim você fica sem reação, não sabe o que fazer. Você fica planejando o que fará, vai responder assim, dizer aquilo, mas a realidade é que ficamos muitas vezes paralisados.

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De maneira mais profunda, há o racismo estrutural. A última escola que a Lua estudou era perto da minha faculdade, em um bairro de classe média alta. E mesmo sendo uma escola pública, é majoritariamente branca e havia sobra de vagas, enquanto a realidade da cidade é uma fila de espera por vagas de pelo menos duas mil crianças.

 A minha hipótese é de que essa demanda está retida nos bairros mais pobres, onde estão as crianças negras.”

Racismo estrutural

“Outro aspecto inerente à vida da mulher negra é a questão de classe. Hoje sou ativista por perceber que há uma estrutura de poder que precisa mudar. Eu costumo pedir para as pessoas me citarem um bilionário negro, em um país onde mais de 50% da população é negra, sem respostas. Essa desigualdade fica bem clara com o avanço do coronavírus.

Aqui em São Bernardo, os bairros mais afetados pela Covid-19 são os mais pobres da cidade. E que vidas são essas? São as dos trabalhadores que moram na periferia, o povo negro, que está servindo, trabalhando e gerando riqueza para outras pessoas enquanto o vírus avança, sem outra opção. Enquanto a gente não substituir esse sistema, o racismo não vai se desfazer.

É um engano pensar que a gente vai conseguir resolver o problema através do consumo ou da mobilidade social. Não vai. Precisamos enxergar o problema como ele é: um reflexo da nossa desigualdade, um problema estrutural, de distribuição de riquezas. Não é uma luta fácil, mas resolvi me dedicar a ela quando descobri que estava grávida de uma criança preta, pois não havia outra maneira de protegê-la.

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O mundo só será seguro para ela se esse sistema mudar. Digo isso para mães negras e brancas: é o futuro do que temos de mais precioso, a vida dos nossos filhos, que está em jogo. E é a isso que tenho dedicado minha vida nos últimos quatro anos.”

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