Renata* já era mãe de dois garotos quando engravidou pela terceira vez. Teria chegado a hora de dar as boas-vindas a uma bebezinha? Era o que ela queria. O ultrassom, no entanto, mostrou algo diferente. “Quando o médico disse que era um menino, senti um aperto. Parecia que eu estava afundando. Não escutava mais nada e me deu vontade de chorar”, lembra.
Assim como a expectativa dessa grávida era ser mãe de uma menina, a expectativa da sociedade sobre as gestantes é de que elas estejam felizes, plenas, radiantes, sorridentes e agradecidas. Afinal, que privilégio é poder gerar uma vida – seja ela do sexo que for! É como se mães se tornassem seres sobrenaturais, divinos, que não podem ficar tristes ou apreensivos. Caso contrário, quanta ingratidão! “Você sabe quantas mulheres gostariam de ter filhos e não podem?”, é um comentário comum.
O que acontece, porém, é que a gravidez pode ser, sim, um momento especial da vida, em que muitas mulheres se sentem gratas, empoderadas, felicíssimas. Mas é também uma fase de mudança, de transformação, de travessia e de ajustes.
“Considerando que mais de 50% das gestações em nosso país não são planejadas, podemos pensar o quanto essas mulheres podem se sentir confusas, frustradas e desconfortáveis com o fato de estarem grávidas”, ressalta a psicóloga Clarissa Erthal, de Vitória (ES). “Nossa sociedade compartilha, inconscientemente, uma idealização da imagem da mulher grávida: plena, feliz, realizada, cheia de amor e não sexualizada. Toda essa expectativa é internalizada pelas mães e pode trazer muita angústia”, diz. A especialista lembra ainda que existem poucos espaços em que tais sentimentos possam ser expressados.
Por que nos frustramos?
A decepção com o sexo do bebê, assim como com qualquer outro aspecto idealizado com a criança que vai chegar, pode acontecer e é frequente, apesar da vergonha e do medo de se falar sobre isso. “Os filhos são gerados emocionalmente muito antes de sua existência física”, destaca Clarissa. “Essa idealização da ‘criança imaginária’ é perpassada por questões culturais, expectativas sociais, desejos pessoais e histórias de vida individuais. Assim, é muito comum que pais idealizem o sexo do bebê, o que, geralmente está relacionado à forma como as pessoas veem seus próprios papéis de gênero e como esperam que o mundo seja para seus filhos”, explica.
De acordo com a psicóloga, os indivíduos muitas vezes buscam formas de se encaixar em normas culturais, quando se prendem a ideias sobre o que é um “lar ideal”, uma “família ideal” ou a melhor maneira de vivenciar a parentalidade. Renata, por exemplo, já tinha dois meninos e talvez tenha achado, naquele instante, que seria mais completa caso fosse mãe de uma menina, para variar. Mas essas idealizações, ressalta Clarissa, podem ser baseadas em estereótipos ligados ao gênero, muito arraigados socialmente, como a imagem de que meninas devem ser doces e delicadas, enquanto meninos precisam ser fortes e corajosos.
“O fato é que os desejos dos pais nunca vão corresponder ao ‘bebê real’ e a quebra dessas expectativas pode começar já na descoberta do sexo do bebê. Quando a idealização se choca com a realidade, pode ser difícil. Aceitar que as coisas não saíram como esperado é uma forma de luto. É quando esses pais ‘perdem’ o filho idealizado e se confrontam com a criança real”, afirma.
Quanto mais idealização, maior a chance de frustração, segundo a psicóloga e pesquisadora Maíra Scombatti, da Lumos Cultural (SP). “Nossa cultura ainda é muito atravessada por esses estereótipos de gênero”, diz. A ideia é reforçada, por exemplo, na popularização de confraternizações como o chá revelação, em que todo o foco está na descoberta do sexo da criança – que é apenas uma característica biológica e não define muito além disso. “A celebração pode acontecer, mas não precisa estar ligada a nenhum estereótipo”, sugere, ressaltando que “é possível questionar, conversar, deixar sentir e também abrir a cabeça para entender o que, de fato, pode ser importante no momento da gestação”.
A verdade é que o sexo do bebê não determina a personalidade, muito menos os interesses ou habilidades dele. “Mães e pais precisam se lembrar de que eles não estão tendo um menino ou uma menina. Eles estão tendo uma criança”, comenta Clarissa. “Ao se abrirem verdadeiramente para a experiência de ter um(a) filho(a), buscando cultivar um sentimento de curiosidade e aceitação em relação àquele pequeno ser que chega ao mundo, esses pais poderão lidar de forma mais saudável com as frustrações e percalços dessa jornada. Nossos filhos, naturalmente, vão nos ensinar sobre quem são, suas qualidades e potencialidades. Só precisamos estar abertos a esse aprendizado”, acrescenta.
Isso, lógico, leva mais tempo para alguns do que para outros. Muitas mães necessitam de ajuda nesse processo, porém não é fácil encontrar a escuta, sem julgamentos. Nem ela mesma está preparada para se entender e se ouvir, sem se culpar pelas emoções.
Acolha seus sentimentos
Deixar sentir, como reforça a psicóloga Maíra, é acolher a emoção, seja ela qual for. Frustração, raiva, tristeza… “Se existe a vergonha, é possível acolher essa vergonha também, assim como a base em que ela se constrói. Não precisamos julgar as emoções, apenas entender de onde elas vêm para, assim, abrir um caminho para a desconstrução dessas estruturas rígidas [como os estereótipos para o sexo masculino/feminino], que não precisam pautar a experiência de receber um bebê”, diz a especialista.
Clarissa destaca a necessidade de que as gestantes tenham em mente que é normal sentir uma gama de emoções conflitantes durante a gravidez – e que não há nada de errado em expressá-las. “Chamamos esse tipo de conflito de ambivalência: quando a mulher se sente, por exemplo, feliz e ao mesmo tempo triste, realizada e ao mesmo tempo frustrada. Isso vale também quando o sexo do bebê não corresponde ao que ela sonhou. A maternidade é uma jornada pessoal e cada mãe tem o direito de se sentir como se sente”, comenta.
Para a psicóloga, admitir e expressar a frustração em relação ao fato de o bebê ser menino ou menina é o ponto de partida para lidar com a situação de forma saudável. “A negação das emoções, quando as expectativas não correspondem ao sexo do bebê – ou a qualquer outro aspecto, como uma condição de saúde -, pode levar a problemas emocionais e de relacionamento, não apenas entre o casal, mas também deles com a criança”, afirma.
Depois de assumir o sentimento para si, conversar com pessoas próximas também pode ajudar, embora saibamos que nem todos estão preparados para fazer isso sem desvalorizar a emoção alheia. Portanto, é essencial falar com quem saiba ouvir. “Especialmente quando se tratam de experiências maternas, é importante que não se chegue com julgamentos, sem espaço de acolher o que essa mãe está sentindo. O julgamento pode causar sofrimento”, ressalta Maíra.
É possível ainda que essa pessoa de confiança (seja o/a parceiro/a, um amigo, alguém da família) auxilie na elaboração do sentimento, ajudando a mulher a se questionar por que o gênero é tão importante para ela. “Às vezes, ela viveu isso na família. Pode ser que tenha nascido menina quando o pai sempre repetia que queria um menino. Então, repete padrões sem nem se dar conta. Abrir uma conversa sobre isso pode ajudar a liberar o que está gerando sofrimento”, explica a especialista.
Quando buscar ajuda profissional
No caso de Renata, a frustração e a tristeza passaram rápido. “Foi só naquele dia. Depois, pedi perdão a Deus e agradeci por ter me dado um filho saudável. Quando o bebê nasceu, a primeira coisa que fiz foi pedir perdão para ele também. Hoje, isso não faz diferença nenhuma, sou muito feliz com meus três meninos”, diz. Mas não é assim com todo mundo. Em algumas situações, essa decepção pode estar associada a quadros mais sérios – como ansiedade ou depressão.
“É importante que se analise com cuidado em qual contexto essa expectativa com relação ao gênero da criança foi criada”, indica Clarissa. “Por exemplo: se a mulher já sofreu algum tipo de abuso ou violência e descobre que está grávida de uma menina, esse fato pode desencadear uma série de sentimentos e memórias dolorosas, que precisam ser tratadas”, aponta.
Em situações como a descrita e em muitas outras, é fundamental buscar a ajuda de um profissional especializado em saúde mental, como um psicólogo, que poderá oferecer suporte e orientação. “A saúde mental materna é um tema de extrema importância e que merece todo o cuidado, especialmente na gestação e no pós-parto. Problemas como ansiedade e depressão que se manifestam na gravidez podem se cronificar e se agravar com o tempo”, alerta Clarissa. Contar com parceiros e familiares atentos nesse sentido faz toda a diferença. “Uma grande frustração em relação ao sexo do bebê pode ser indicativo de algo ainda mais profundo”, completa.
*O nome foi trocado para proteger a identidade da entrevistada.