A gravidez deveria ser um momento especial na vida de Renata Kolya, professora de artes, 30, mas foi um grande pesadelo. “Nunca planejei ser mãe, não tinha essa vontade. A ideia surgiu depois que eu conheci o pai do meu filho”, conta. “Quando eu descobri que estava grávida, pesava 140 kg e aí fui atrás de obstetras para fazer o pré-natal e os exames”. Renata teve a atitude que qualquer gestante preocupada com a própria saúde e com a saúde do bebê teria. Mas o tratamento que ela recebeu foi diferente, logo no início.
A médica explicou que ela poderia ganhar um pouco de peso, de 10 a 12 kg, sem prejudicar a saúde do feto, mas pediu para ela emagrecer. Passou uma dieta hiper-restritiva e manipulou uma fórmula de remédio para perder peso. “Eu saí de lá meio desnorteada, não queria tomar remédio. Então, fui procurar outro médico”, lembra.
Renata encontrou um profissional mais velho, que atendia perto de onde ela morava, e que realmente passou todos os exames, encaminhou para o acompanhamento com um nutricionista e um endocrinologista, como tinha de ser. “Nos exames, foi detectada uma alteração leve de pré-diabetes. Comecei a tomar um medicamento prescrito pelo endócrino e passei a perder muito peso. Junto disso, fazia a dieta do nutricionista e evitava doces. Não comi uma bala, nem um grama de açúcar durante a gestação, porque eu acreditava que ia matar meu filho. Afinal, foi isso que ouvi de um dos médicos que me atendeu”, relata. Imagine o pânico!
Um medo nada positivo para quem já estava com sintomas de depressão. A professora explica que, quando descobriu a gestação, tinha acabado de perder o avô. “Isso me ajudou, inclusive, a chegar a esses 140 kg”, lembra. Renata tinha medo de se alimentar. “Perdi 30 kg durante a gravidez. Eu achava isso incrível. Não tinha noção de como poderia ser perigoso”, afirma.
Nas semanas finais, uma reviravolta. O único médico que ela tinha encontrado e que a tratou de maneira aceitável teve problemas de saúde um pouco antes da data prevista para o parto e não poderia acompanhá-la no nascimento do bebê. “Ele deixou uma carta, especificando tudo o que tinha acontecido durante a gestação, sobre a perda de peso, os exames, etc. e me indicou uma médica. Fui até o consultório dela, que era famoso, todo mundo elogiava. Paguei a consulta. Ela não olhou na minha cara, foi muito desagradável. Nem sentei, ela não viu os exames. Foi quando ela olhou para mim e falou: ‘Eu não vou encostar em você, você é uma pessoa gorda, você vai morrer e seu filho vai para a UTI, seu filho vai nascer com problema’”. Acabou ali. Renata nem terminou de ouvir o que ela tinha para dizer e saiu do consultório aos prantos, junto com sua mãe e sua avó, que a acompanhavam e desabaram junto.
Na mesma noite, uma sexta-feira, a professora teve um sangramento e procurou o hospital. Ela estava com 36 semanas. Fez todos os exames, os batimentos cardíacos do bebê estavam bem, tudo certo com ela também. Pediram que voltasse para casa e retornasse ao hospital na segunda-feira. Depois de passar o fim de semana com dor, foi o que ela fez. “Me internaram”, relata. “Na terça-feira, fiz alguns exames, um ultrassom, checaram os batimentos. À tarde, percebemos que minha cama estava molhada. A bolsa tinha rompido, só que na parte superior. Eu estava perdendo líquido”, lembra. A equipe decidiu induzir o parto. “A partir daí, foi um completo inferno”, ressalta.
A grávida, então com 21 anos, teve o combo completo da violência obstétrica somado à gordofobia. Segundo ela, foram médicos estúpidos, exames de toque violento, proibiram a entrada de um acompanhante, fizeram a manobra de Kristeller [quando os profissionais de saúde sobem sobre a barriga da grávida para empurrar], episiotomia… “Os médicos falavam ‘aquela gorda do quarto tal’ e ‘você é tão gorda que não vai conseguir fazer força’. Passei a noite em claro, com muita dor, ninguém me ajudava, ninguém me falava o que estava acontecendo”, conta, antes de dar uma pausa na entrevista ao Bebê, porque, mesmo passado tanto tempo, é difícil lembrar de tamanho sofrimento. “Foi um parto ‘anormal’”, diz ela, que é mãe de Elvis, hoje com quase 9 anos.
Perda gestacional, com requintes de crueldade
Infelizmente, Renata não está sozinha nessa. Nas redes sociais, há milhares de relatos, com a #gordofobiamedica. Nem todos são relacionados à gravidez, mas, como essa já é uma fase delicada da vida das mulheres, a intensidade do sofrimento, nos mais variados desfechos, é ainda mais cruel. Flora Paulita, diretora de dublagem, 29, que o diga! Ela passou por uma perda gestacional. Por conta da gordofobia que sofreu na sua primeira ida ao consultório obstétrico, passou um bom tempo se perguntando se ela e seu corpo teriam sido culpados pelo desfecho trágico da história.
“A primeira coisa que a médica falou para mim foi que minha gravidez era de risco porque eu era uma pessoa obesa, segundo o meu índice de massa corpórea (IMC), sendo que, na época, como eu treinava muito musculação – sempre gostei -, fazia avaliações constantes para medir índice de gordura e meu corpo tinha muito mais músculo do que qualquer outra coisa”, conta. “O jeito que ela falou foi zero acolhedor. Parecia que eu precisava sentir vergonha de não ter 50 quilos porque tinha 1,53m de altura, sabe?”, aponta.
Flora acabou encontrando outra obstetra, com um atendimento humanizado, que cuidou da saúde dela e da saúde do bebê, pediu os exames e fez todo o acompanhamento. No entanto, como poderia acontecer com qualquer mulher, com qualquer tipo de corpo, a gravidez teve uma intercorrência séria e fatal. Ela teve um hematoma na placenta, que impedia o bebê de receber oxigênio e nutrientes. “Acabei tendo um óbito fetal com 33 semanas. Caetano não resistiu, acabei fazendo um parto natural humanizado, como sempre quis, mas ele já estava sem vida”, relata.
A causa da morte só pode ser descoberta depois do parto. Até lá – e mesmo durante muito tempo depois -, além de todo o processo de luto de qualquer mãe que vive uma perda gestacional, em fase avançada da gravidez, ela tinha de lidar com a culpa por algo que não poderia controlar. “A gordofobia perpetuou durante muito tempo na minha cabeça. A gente passa por um período do luto, em que sente culpa pelo que aconteceu”, afirma. “Achava que poderia ter evitado isso, que poderia ter sido mais saudável. Pensava coisas até meio absurdas, tipo: ‘Não devia ter tomado aquele refrigerante ontem, porque isso não faria minha pressão subir’, sabe? Umas coisas que nem tem como controlar. Não era como se eu bebesse 800 litros de refrigerante por dia – e, mesmo que bebesse, não foi isso que fez com que o Caetano partisse”, diz.
Tal consciência, no entanto, demorou a chegar. “Essa culpa mesmo, só começou a ir embora nos últimos meses”, diz Flora, que viveu tudo isso em abril de 2019. Ou seja, dois anos de uma dor intensa e cruel.
Gordofobia mata
A gordofobia pode até matar. A afirmação é forte, mas é real e quem explica é a professora doutora Malu Jimenez, filósofa, escritora, ativista e pesquisadora transdisciplinar das corporalidades gordes. “O ativismo gordo nasce em 1970 nos EUA, com uma ocorrência de uma mulher gorda, a Cass Elliott, vocalista do grupo The Mamas and the Papas. Ela tinha muita dor no estômago e, por isso, procurava ajuda médica, ia a diversos hospitais. Sem fazer exames, eles sempre falavam para ela emagrecer que isso melhoraria”, relata. “Infelizmente, depois de um tempo, ela descobriu que estava com um câncer terminal e veio a falecer. Isso é mais comum do que a gente imagina. Muitas pessoas gordas acabam morrendo por falta de um atendimento digno, de prevenção, por causa dessa associação de que tudo o que acontece com elas acontece porque já estão doentes”, afirma.
A gordofobia é um estigma estrutural institucionalizado, segundo Malu. “Isso significa que a forma como pensamos, nos organizamos, construímos conhecimento é gordofóbica. Nós associamos o corpo gordo a um corpo feio, ruim, doente, inferior e que vale tudo para não estarmos nele”, pontua.
A maternidade é um fator que adiciona uma camada de sofrimento à questão. “É muito mais difícil porque a mulher gorda vai ser julgada o tempo todo pela família, pela equipe médica, pela sociedade, enfim. Além das inseguranças que já vêm nesse momento, ela vai ter de lidar com o julgamento excessivo”, aponta a filósofa. “A gordofobia é estrutural, ou seja, está em todos os lugares. Quando a mulher gorda engravida, essa gordofobia se multiplica em todos que, na verdade, deveriam apoiar e cuidar dessa pessoa”, diz.
Gordofobia nos consultórios de obstetrícia
Um dos lugares em que a mulher gorda grávida deveria se sentir cuidada, junto de seu filho, é o consultório do obstetra. Como Renata e Flora, mães, seja qual for seu tipo de corpo, buscam um olhar profissional e um acompanhamento de qualidade ao longo dos nove meses. Só que, ao chegar, muitas vezes, se deparam com o cenário contrário. “A mulher gorda é estigmatizada dentro da medicina, por melhor que esteja sua saúde”, diz a ginecologista e obstetra Gabriela Bezerra, especialista em medicina fetal, de São Paulo (SP). “O médico costuma olhar para aquela mulher como uma bomba-relógio e pensar: ‘Ah, está gorda, então, deve ter diabetes’. Ou: ‘Se está gorda, deve ter hipertensão’. E, muitas vezes, não é isso o que acontece”, afirma.
A associação da saúde ao tamanho do corpo se deve, em grande parte, pelos estudos de saúde baseados no índice de massa corpórea, o famoso IMC, que é um cálculo baseado no peso e na altura. “Só que esse cálculo já está sendo questionado pela própria comunidade médica há algum tempo”, aponta a professora Malu.
Existem mulheres gordas com problemas de saúde, assim como existem mulheres magras com problemas de saúde. Existem mulheres gordas com dificuldades para engravidar, assim como existem mulheres magras que precisam de tratamento de fertilidade. O peso, em si, não é a resposta para tudo. Pelo contrário. Como é uma característica visível e estigmatizada, pode ser apontado como “culpado” por problemas, antes mesmo de uma investigação adequada, o que atrasa tratamentos e pode ter consequências sérias, como o óbito.
Obesidade = gestação de risco?
“Dizer que o corpo gordo é necessariamente um risco é gordofobia”, diz Malu. Existem, sim, estudos que associam a obesidade a um número maior de partos prematuros, a bebês com baixo peso ao nascer e ao aumento do risco de intercorrências perigosas como pré-eclâmpsia e diabetes gestacional. “Porém, não necessariamente uma mulher gorda vai ter essas condições”, afirma Gabriela. “Existem muitas mulheres que me procuram, dizendo que querem engravidar, mas receberam uma contra-indicação de gestação, porque são gordas. Isso não existe!”, pontua. Para a obstetra, essa mulher só precisa de um acompanhamento adequado e da mesma atenção à saúde que seria dispensada a qualquer outra paciente.
“É importante avaliar se o bebê vem crescendo bem, se está tudo bem, se a mulher não está passando fome por contas de dietas restritivas, se está consumindo nutrientes adequados, se a gestação está evoluindo de forma saudável. Essa é a linha tênue”, diz a médica, sobre a separação entre preconceito e gordofobia e atenção à saúde materna de uma mulher gorda.
É comum ouvir mitos como o que diz que uma mulher gorda não pode ter parto normal, mas, segundo a obstetra, não existe impeditivo. “As indicações de cesariana para uma mulher gorda são as mesmas indicações de cesariana para uma mulher magra. Não existe diferença nessas circunstâncias. Inclusive, do ponto de vista de redução de risco, é melhor que ela não seja submetida a uma cirurgia de médio porte. Logo, não é interessante que ela passe por uma cesariana desnecessária”, explica.
O acompanhamento médico de uma grávida gorda
Ele deve igual ao acompanhamento médico de uma grávida magra. “Os médicos precisam tratar todas as pessoas da mesma forma. Infelizmente, não é isso que acontece”, aponta a professora Malu. “Os médicos não podem associar a ideia de que aquela mãe gorda não pode ter um filho, porque ela já está doente. Eles precisam se basear em exames”, diz. “É importante, inclusive, que haja uma formação para os profissionais de saúde sobre o estigma da gordofobia, para que não se repitam esses erros que vêm acontecendo durante muitos séculos”, completa.
Gabriela concorda. “Como ginecologista, meu objetivo é fazer com que essa mulher fique saudável. Então, eu preciso saber se ela tem hipertensão, ela vai para o cardiologista, eu vou pedir um mapa pressórico, vou pedir uma avaliação cardiológica, vou pedir uma avaliação endocrinológica, vou avaliar essa mulher como um todo e falar: ‘Olha, essa mulher está bem’. Ou, se, eventualmente, eu descobrir que ela tem alguma condição, vou tratar ou vou pedir para a especialidade responsável por determinada questão que me ajude a tratar, objetivando a gestação dessa mulher”, pontua.
Tanto Flora quanto Renata pretendem engravidar novamente, apesar dos traumas quase indescritíveis que viveram. Em uma próxima vez, no entanto, elas estariam melhor preparadas. “Tenho muito mais ideia do que é a violência obstétrica e do que é a gordofobia. Tenho uma relação completamente diferente com o meu corpo, depois de tudo o que passei, com todos os anos de terapia e tudo mais. Então, acho que seria mais fácil lidar. Eu buscaria o acompanhamento de uma doula, procuraria médicos mais humanos”, enumera a professora de artes.
“A vontade de começar a tentar de novo veio esse ano”, diz Flora. “Não agora, mas penso, sim, em engravidar novamente. Só que dessa vez, eu não ficaria calada!”, conclui.