Não é raro nos depararmos com histórias de mulheres, famosas e anônimas, que engravidaram e acabaram perdendo o bebê durante a gestação. Talvez até você, uma amiga próxima ou familiar já tenha passado pelo trauma de uma gravidez que não se completou.
Apesar de muito comum – de acordo com a ginecologista, obstetra e especialista em reprodução humana Carla Iaconelli, de 20 a 30% das gestações não se completam antes das 12 semanas de desenvolvimento do feto – a perda gestacional ainda é considerada um grande tabu social, muito por conta de estar diretamente relacionada como a culpa sentida por mães tentantes, a vergonha de falar sobre o assunto, falta de apoio e, mais importante, a questão do luto materno.
Por isso, muitas mães desta geração, marcada por mais discussões em redes sociais e conversas abertas sobre o universo da maternidade, enxergam a necessidade de banir o termo “aborto espontâneo” do vocabulário, inclusive médico. Apesar de parecer algo um tanto quanto simples à primeira vista, devemos entender que algumas mudanças na intenção de dar suporte para quem passou ou está passando pela dor de perder um bebê ainda na barriga também envolvem a construção de novas linguagens.
Aborto espontâneo X perda gestacional
Carla explica que, na medicina, uma perda gestacional ocorre quando um feto ou embrião de até 20 semanas e com peso menor de 500 gramas morre de forma não-induzida. Na língua inglesa, o termo habitualmente usado para indicar uma perda gestacional é “miscarriage” que, por definição, é a “expulsão de um feto do útero antes que ele seja capaz de sobreviver de forma independente, especialmente de maneira natural ou como resultado de um acidente”.
Já a palavra “abortion” é usada quando, em inglês, falamos sobre a “interrupção deliberada de uma gravidez humana, mais frequentemente realizada durante as primeiras 28 semanas de gravidez”. Simplificando, para americanos e britânicos, um aborto – apesar das leis serem divergentes de país para país – é um procedimento médico voluntário, enquanto que uma perda gestacional é contrária à vontade da mãe.
Em português, porém, “aborto” é usado em ambos os casos, e é essa necessidade de substituição da palavra que vem sendo discutida atualmente.
“Dizer que uma mulher sofreu um ‘aborto espontâneo’ é o mesmo que não legitimar todos os aspectos emocionais que envolvem esse fato. Quando uma mãe perde o filho ela não quer escutar que sofreu um ‘aborto espontâneo’, ela espera de todos os profissionais de saúde que estão cuidando dela o mínimo de empatia com o que ela irá passar a partir dessa que pode ser a pior notícia de sua vida”, opina a psicóloga clínica Carolina Oliva, que além de atender mães e famílias que passam pelo luto gestacional ou neonatal, também sofreu com a perda gestacional e, hoje em dia, administra o perfil Jornada do Luto Materno, no Instagram.
Carolina conta que sempre procura trazer essa questão de mudança do termo como urgente quando conversa com suas pacientes. “Ela [a discussão sobre “aborto espontâneo” e “perda gestacional”] tem acontecido, mas parte muito mais de pessoas que estão na luta pela consciência do luto perinatal, como influenciadoras, psicólogas, grupos de apoio ao luto materno e de famílias do que de mulheres que passam pela perda. A consciência geralmente acontece quando elas encontram esse apoio e se informam, engajam conosco. É preciso mudar não somente o termo ‘aborto espontâneo’ para ‘perda gestacional’, é preciso mudar o olhar para uma realidade tão dura que acontece todos os dias nas maternidades brasileiras”, completa.
A influenciadora digital Gabriela Hordones (@gabrielahordones), que também passou por uma perda gestacional ainda neste ano, de mesmo modo enxerga essa necessidade de mudança: “Acredito que a palavra ‘aborto espontâneo’ é muito grosseira, pois ‘aborto’ se refere ao ato de querer parar uma gestação que não é bem-vinda. Já uma perda gestacional é totalmente o contrário disso: a mãe queria muito ter aquele bebê e, infelizmente, isso não foi possível”, diz. Ela acredita, ainda, que a perda gestacional (e tudo o que ela envolve) é um assunto que deveria ser mais abordado nos meios de comunicação a fim de influenciar mais mulheres a se engajarem na causa e apoiarem umas às outras, já que é pouco falado de maneira geral.
Trabalhando a culpa
Carla ressalta que, quando uma mãe perde um bebê ainda em formação, um dos principais sentimentos a serem trabalhados é a culpa, já que a mulher tende a se sentir responsável por aquela perda e até a buscar justificativas que a tornam causadora disso (hábitos alimentares, prática de alguma atividade física de maneira irregular, etc) – o que não é verdade.
O papel do médico, nesses casos, é tranquilizar a mãe dizendo para ela que, enquanto aquele embrião esteve em seu útero, ele foi implantado e recebeu tudo o que precisava para se desenvolver e isso, infelizmente, não depende da vontade dela.
O que explica, então, a ocorrência de uma perda gestacional? A médica informa que atualmente, graças à tecnologia criada em torno da reprodução humana assistida, é possível fazer uma biópsia dos embriões e, antes mesmo deles serem colocados no útero dá para saber se aquele embrião possui ou não alguma alteração cromossômica. Isso é importante porque, segundo ela, de 80 a 90% das perdas gestacionais ocorrem devido a alterações nos cromossomos – enquanto isso, a porcentagem de embriões “normais”, de maneira geral, é de apenas 50%.
A incidência dessas alterações nos cromossomos também aumenta com o avanço da idade da mulher, o que explica um número maior de perdas gestacionais em mulheres de idade reprodutiva mais avançada e, por consequência, envelhecimento do óvulo. Dessa forma, quanto maior a idade da mulher, maior o risco de perda mas, mesmo assim, todos os casos devem ser investigados.
“A primeira coisa que eu explico para as minhas pacientes é sobre a nossa natureza humana e a probabilidade de um embrião com alteração genética não conseguir se desenvolver. Existem, sim, outras causas de perda gestacional, como alterações no útero (mioma, pólipo, septo, hidrossalpinge…). Se a paciente tem idade maior que 35 anos, logo na primeira perda a gente já faz a investigação pra que ela não perca tempo útil de vida reprodutiva, mas o mais importante é explicar que ela não tem culpa disso”, acrescenta.
Mudança de cenário
Tanto Carla quanto Carolina e Gabriela concordam que uma das maneiras de quebrar o tabu em torno da perda gestacional é cada vez mais falar e discutir sobre o assunto, inclusive na mídia e nas redes sociais. A psicóloga explicita o fato de que a mulher que passa pela perda de um filho, seja na gravidez, no parto ou no pós-parto, vive uma realidade triste, solitária e muitas vezes traumática, e é por isso que ela deve procurar ajuda, principalmente psicológica, além de conversar com quem também já sofreu com isso. Para ela, tudo o que não é falado de forma correta vira tabu, e a morte ainda é um mais fortes em nossa sociedade.
Gabriela, que logo ao descobrir a perda foi tomada por sentimentos como vergonha e fracasso, resolveu usar seu perfil do Instagram para compartilhar sua experiência e dar apoio a outras mulheres que passaram ou ainda vão passar por algo similar.
“A perda gestacional e o luto materno vivido por algumas mulheres são de uma dor que machuca, dilacera, e eu nem consigo explicar em palavras como e o quanto dói. São todos os seus sonhos e planos destruídos, é impressionante o tamanho dessa dor por alguém que você nunca viu, nunca ouviu, mas que você sente um amor inexplicável. No início eu não tinha vontade de contar a ninguém, mas fui lembrando de como essas mesmas mães que passaram pelo mesmo que eu me deram tanta força, então comecei a pensar que a minha história também poderia ajudá-las. Esse filho sempre fará parte da nossa história, dessa família, e mesmo que sua passagem tenha sido breve, ele viverá pra sempre em seu coração”, confessa.
Respeito ao luto materno
No início de outubro passado, a modelo Chrissy Teigen foi mais uma que usou as redes sociais para compartilhar a perda do bebê que estava esperando, e foi criticada por alguns pelo fato de exibir fotos tiradas enquanto ela e o marido, John Legend, estavam no hospital. É esse julgamento alheio, inclusive, que faz com que muitas mães evitem falar sobre suas perdas, mas nós não devemos esquecer de que o luto é um processo extremamente particular e necessário.
Para a Dra. Carla, é fundamental também que a medicina seja cada vez mais individualizada para visar o melhor tratamento e promover acolhimento e apoio para que mulheres que sofreram com uma perda gestacional tenham coragem de tentar de novo se quiserem.
“O luto tem que ser vivenciado: não importa se o bebê já tinha mais idade gestacional ou se tinha pouco. O luto é o mesmo e as pessoas vivem ele de diferentes maneiras, podendo durar mais ou menos tempo dependendo de cada um, e temos que respeitar. Nós, como médicos, precisamos dar atenção personalizada para a mulher nesses casos. Ela vai viver um luto e vai se recuperar, e nós vamos juntas continuar essa investigação e tentar ao máximo para que ela engravide novamente e leve essa gestação a termo”.
Carolina faz coro: “As pessoas confundem sentir o luto com fracasso, vergonha, como se tivéssemos a obrigação de sermos felizes a todo custo e a todo tempo. O adeus também é muito necessário quando a morte visita a maternidade. É preciso sentir, viver todos os momentos. Isso ajuda a dar sentido e a consolidar o fato de que aquela mulher é mãe, mesmo que seu filho não tenha nascido vivo. É preciso informar a mulher de que ela tem todo o direito de tirar uma foto do seu bebê, de chamá-lo pelo nome, de ver cada parte de seu corpinho, de carregá-lo, de abraçá-lo pelo tempo que for necessário, e de recolher o máximo de lembranças possíveis e de que ela tiver vontade”.
Por fim, se você precisa lidar com uma mãe, pai ou família em luto por conta de uma perda gestacional e não sabe o que dizer, o melhor a fazer é nunca julgar a vivência do outro: use de sensibilidade, acolha, escute, respeite a dor e ofereça apoio, esse é seu papel.